"Quantas pessoas não têm vendido sua alma ao diabo
na busca de um frescor que não durará para sempre,
de uma eternização da beleza,
dos esforços para ser aceito,
amado… "
Era, no gênero, talentoso, criativo, ousado.
Mas é possível que tenha se deixado trair pelo mais perigoso
de todos os demônios da legião que nos tenta todas as horas do dia:
aquele que nos sopra aos ouvidos
que nossas qualidades derivam de nossos defeitos;
sem estes, não teríamos aquelas.
É uma das farsas grotescas do diabo.
Os defeitos, é claro, são só o que nos atrapalha.
A partir de um momento de sua trajetória,
Jackson parecia mais livre do que todos nós,
a tal ponto que resolveu recriar a própria imagem.
Pensem um pouco.
É o espelho que, no dia a dia,
recolhe os nossos cacos e os cola numa inteireza:
“Este é você”, ele nos diz.
Olhando-nos, podemos ver a nossa própria consciência,
as dores que só nos conhecemos,
os medos que não confessamos.
Está tudo lá.
Diante de nossa própria figura,
na solidão,
o coração pode, então,
como num soneto antigo, estampar-se no rosto.
Não há plástica ou cosmética que possam nos livrar de nós mesmos.
Refugiado em Neverland,
Jackson quis ser “Outro”,
dissociando o que ele realmente era daquele que ele via.
O que o espelho nos mostra de mais importante não são, pois,
nossas rugas, nossos cabelos brancos,
nossos quilos a mais ou a menos.
Dia após dia, ele resume a nossa vida.
Vemos, parafraseando Drummond,
o queixo de nosso pai no nosso queixo;
marcas da família desenhando nossa idade madura
e nos acenando com a velhice
— vislumbramos o nosso queixo no queixo de nossos filhos:
sobreviveremos.
Justificamo-nos, enfim, diante dele,
tentando, à saída, uma última conciliação:
quem sabe ele nos perdoe e nos diga um
“Siga adiante”.
E ele costuma dizer.
E só por isso tocamos o barco.
Como era com Jackson?
Pouco importa a causa imediata de sua morte,
o que se viu foi um dos suicídios mais lentos do showbiz,
área em que ou se desaparece muito cedo,
como a evocar a máxima de que “morre cedo o que os deuses amam”,
ou se entra em decadência, com o esquecimento
e a irrelevância cortejando a estrela.
Ele ainda tentava mudar a escrita do destino,
buscando um renascimento com shows na Inglaterra.
Não houve tempo.
Os deuses roubam quando dão.
E o mais perverso de todos os novos deuses olímpicos é a fama.
Jackson foi eliminando progressivamente a memória de si mesmo,
ficando sem passado.
E, à medida que mergulhava sabe-se lá em que doença do espírito,
tinha menos o que dizer para o futuro.
O garoto genial (para o gênero ao menos) de Thriller era uma carcaça.
Jackson, morto em vida, estava oco de si mesmo.
Aquele do espelho não era ele,
mas também não era ninguém.
De fato, havia morrido fazia tempo.
Seu sofrimento não deve ter sido pequeno.
Reinaldo Azevedo
Veja
na busca de um frescor que não durará para sempre,
de uma eternização da beleza,
dos esforços para ser aceito,
amado… "
Era, no gênero, talentoso, criativo, ousado.
Mas é possível que tenha se deixado trair pelo mais perigoso
de todos os demônios da legião que nos tenta todas as horas do dia:
aquele que nos sopra aos ouvidos
que nossas qualidades derivam de nossos defeitos;
sem estes, não teríamos aquelas.
É uma das farsas grotescas do diabo.
Os defeitos, é claro, são só o que nos atrapalha.
A partir de um momento de sua trajetória,
Jackson parecia mais livre do que todos nós,
a tal ponto que resolveu recriar a própria imagem.
Pensem um pouco.
É o espelho que, no dia a dia,
recolhe os nossos cacos e os cola numa inteireza:
“Este é você”, ele nos diz.
Olhando-nos, podemos ver a nossa própria consciência,
as dores que só nos conhecemos,
os medos que não confessamos.
Está tudo lá.
Diante de nossa própria figura,
na solidão,
o coração pode, então,
como num soneto antigo, estampar-se no rosto.
Não há plástica ou cosmética que possam nos livrar de nós mesmos.
Refugiado em Neverland,
Jackson quis ser “Outro”,
dissociando o que ele realmente era daquele que ele via.
O que o espelho nos mostra de mais importante não são, pois,
nossas rugas, nossos cabelos brancos,
nossos quilos a mais ou a menos.
Dia após dia, ele resume a nossa vida.
Vemos, parafraseando Drummond,
o queixo de nosso pai no nosso queixo;
marcas da família desenhando nossa idade madura
e nos acenando com a velhice
— vislumbramos o nosso queixo no queixo de nossos filhos:
sobreviveremos.
Justificamo-nos, enfim, diante dele,
tentando, à saída, uma última conciliação:
quem sabe ele nos perdoe e nos diga um
“Siga adiante”.
E ele costuma dizer.
E só por isso tocamos o barco.
Como era com Jackson?
Pouco importa a causa imediata de sua morte,
o que se viu foi um dos suicídios mais lentos do showbiz,
área em que ou se desaparece muito cedo,
como a evocar a máxima de que “morre cedo o que os deuses amam”,
ou se entra em decadência, com o esquecimento
e a irrelevância cortejando a estrela.
Ele ainda tentava mudar a escrita do destino,
buscando um renascimento com shows na Inglaterra.
Não houve tempo.
Os deuses roubam quando dão.
E o mais perverso de todos os novos deuses olímpicos é a fama.
Jackson foi eliminando progressivamente a memória de si mesmo,
ficando sem passado.
E, à medida que mergulhava sabe-se lá em que doença do espírito,
tinha menos o que dizer para o futuro.
O garoto genial (para o gênero ao menos) de Thriller era uma carcaça.
Jackson, morto em vida, estava oco de si mesmo.
Aquele do espelho não era ele,
mas também não era ninguém.
De fato, havia morrido fazia tempo.
Seu sofrimento não deve ter sido pequeno.
Reinaldo Azevedo
Veja
um belo e claro texto a respeito de Michael Jackson
3 comentários:
Rachel,
realmente muito lindo.....amei,
ju
eu tb adorei
"sim, são para se ter medo, os espelhos" guimarães rosa (se não me engano)
muito verdareiro este texto. para mim ele era muito fragilizado espiritualmente... uma pena.
Patrícia
Postar um comentário