
Olhe para todos a seu redor
e veja o que temos feito de nós. 
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos 
porque não queremos passar por tolos. 
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, 
mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, 
e ficado do lado de fora, 
pois as catedrais que nós mesmos construímos, 
tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos,
pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. 
Temos evitado cair de joelhos 
diante do primeiro de nós que por amor diga: 
tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes 
onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, 
mas sem usar a palavra salvação 
para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor 
para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, 
de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte 
para tornar nossa vida possível. 
Muitos de nós fazem arte 
por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, 
sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo 
o grande medo maior 
e por isso nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez 
de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos 
para não rirmos de nós mesmos 
e para que no fim do dia possamos dizer 
"pelo menos não fui tolo" 
e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público 
do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
Clarice Lispector
 
 


Um comentário:
como nos defendemos...
a entrega é mesmo difícil
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