quinta-feira, 18 de setembro de 2008

A ALMA DO OUTRO...


"No relacionamento amoroso, familiar ou amigo
acredito que partilhar a vida com alguém que
valha a pena é enriquecê-la.
Permanecer numa relação desgastada
é suicídio emocional,
é desperdício de vida"


""A alma do outro é uma floresta escura",
disse o poeta Rainer Maria Rilke, meu único autor de cabeceira.
A vida vai nos ensinando quanto isso é verdade.
Pais e filhos, irmãos, amigos e amantes
podem conviver décadas a fio,
podem ter uma relação intensa,
podem se divertir juntos e sofrer juntos,
ter gostos parecidos ou complementares,
ser interessantes uns para os outros, superar grandes conflitos
– mas persiste o lado avesso,
o atrás da máscara,
que nunca se expõe nem se dissipa.
Nem todos os mal-entendidos,
mágoas e brigas se dão porque somos maus,
mas por problemas de comunicação.
Porque até a morte nos conheceremos pouco,
porque não sabemos como agir.
Se nem sei direito quem sou,
como conhecer melhor o outro,
seu pai, meu filho, meu parceiro, meu amigo
– e como agir direito?
Neste momento escrevo, como já disse,
um livro sobre o silêncio.
Começou como um ensaio na linha de O Rio do Meio
e Perdas & Ganhos,
mas acabou se tornando um romance,
em pleno processo de elaboração.
Isso me faz refletir mais agudamente
sobre a questão da comunicação
e sua por vezes dramática dificuldade,
pois nos mal-entendidos reside
muito sofrimento desnecessário.
Amor e amizade transitam entre esses dois "eus"
que se relacionam em harmonia e conflito:
afeto, generosidade, atenção,
cuidados, desejo de partilhamento
ou de vida em comum, vontade de fazer e ser um bem,
e de obter do outro o que para a gente é um bem,
o complicado respeito ao espaço do outro,
formam um campo de batalha e uma ponte.
Pontes podem ser precárias, estradas têm buracos,
caminhos escondem armadilhas inconscientes
que preparamos para nossos
próprios passos em direção do outro.
O que está mergulhado no inconsciente
é nosso maior tesouro e o mais insidioso perigo.
Pensar sobre a incomunicabilidade
ou esse espaço dela em todos os relacionamentos
significa pensar no silêncio:
a palavra que devia ter sido pronunciada,
mas ficou fechada na garganta e era hora de falar;
o silêncio que não foi erguido no momento exato
– e era o momento de calar.
Mas, como escrevi várias vezes, a gente não sabia.
É a incomunicabilidade, não por maldade ou jogo de poder,
mas por alienação ou simples impossibilidade.
Anos depois poderá vir a cobrança:
por que naquela hora você não disse isso?
Ou: por que naquele momento você disse aquilo?
Relacionar-se é uma aventura,
fonte de alegria e risco de desgosto.
Na relação defrontam-se personalidades,
dialogam neuroses, esgrimem sonhos
e reina o desejo de manipular disfarçado de delicadeza,
necessidade ou até carinho.
Difícil?
Difícil sem dúvida, mas sem essa viagem emocional
a existência é um deserto sem miragens.
No relacionamento amoroso,
familiar ou amigo acredito que partilhar a vida com alguém
que valha a pena é enriquecê-la;
permanecer numa relação desgastada é suicídio emocional,
é desperdício de vida.
Entre fixar e romper, o conflito e o medo do erro.
Somos todos pobres humanos,
somos todos frágeis e aflitos,
todos precisamos amar e ser amados,
mas às vezes laços inconscientes enredam nossos passos
e fecham nosso coração.
A balança tem de ser acionada:
prevalecem conflitos ásperos e a hostilidade,
ou a ternura e aqueles conflitos
que ajudam a crescer e amar melhor,
a se conhecer melhor e melhor enxergar o outro?
O olhar precisa ser atento:
mais coisas negativas ou mais gestos positivos?
Mais alegria ou mais sofrimento?
Mais esperança ou mais resignação?
Cabe a cada um de nós decidir,
e isso exige auto-exame, avaliação.
Posso dizer que sempre vale a pena,
sobretudo vale a pena apostar
quando ainda existe afeto e interesse,
quando o outro continua sendo um desafio em lugar de um tédio,
e quando, entre pais e filhos, irmãos, amigos ou amantes,
continua a disposição de descobrir mais e melhor quem é esse outro,
o que deseja, de que precisa, o que pode
– o que lhe é possível fazer.
Lya Luft

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