quarta-feira, 25 de junho de 2008

UMA PRIMEIRA-DAMA QUE VALEU A PENA




UMA PRIMEIRA-DAMA QUE VALEU A PENA


Quando personalidades marcantes,
daquelas que se distinguem no cenário nacional,
partem para quem sabe outra dimensão,
fica uma sensação de perda como se fosse a de um parente,
de alguém próximo, apesar de não termos tido
contato pessoal com essa figura.
Assim, com certeza, se sentiram os brasileiros
quando tomaram conhecimento da morte
da ex-primeira-dama, dona Ruth Cardoso,
ocorrido em 24/06/2008.
Essa comoção não é normal com relação às primeiras-damas.
Geralmente, elas não se destacam,
ofuscadas por seus maridos,
sobretudo quando estes são presidentes da República.
Algumas esposas de presidentes exercem
ou simulam exercer certas funções de assistência social
sem muita relevância.
Outras se limitam a freqüentar ocasiões sociais
ou acompanhar seus maridos em viagens
para compor o quadro que os eleitores admiram:
o da família bem constituída.
Portanto, primeiras-damas podem ser
também peças de marketing,
figuras sem vida própria
com tendência a resvalar para futilidades
que os privilégios do seu status comportam.
Dona Ruth Cardoso fugiu à regra.
Extremamente discreta,
dotada de elegância sóbria e gestos comedidos,
dona de invejável cultura,
ela se destacou no cenário nacional pelo trabalho desenvolvido
na área social e pela preocupação com os menos favorecidos.
Antes de mais nada, ela foi uma mulher
como o são as mulheres de fibra, ou seja,
foi primeiramente mãe.
Assim, enquanto o marido, Fernando Henrique Cardoso,
se dedicava aos estudos e fazia brilhante carreira,
inclusive internacional, como sociólogo,
a antropóloga Ruth cuidou dos filhos do casal,
o que fez com que sua trajetória acadêmica
ocorresse mais lentamente que a dele.
Mesmo assim, conseguiu defender o mestrado em 1970
e o doutorado em 1972.
Num país como o nosso, em que se cultiva a mediocridade,
a educação caiu ao seu nível mais baixo
e não se premia o mérito,
infelizmente essa enorme dedicação aos estudos
é vista como coisa da elite ou algo desnecessário.
Seria, então, preciso mudar nossa mentalidade
para se reverenciar os que vencem por mérito.
Dona Ruth foi também professora e pesquisadora e,
quando seu marido chegou à presidência da República,
assumiu a presidência do Programa Comunidade Solidária.
A partir daí, foi uma primeira-dama incansável
no combate à exclusão social.
Menos pelo papel que lhe coube junto a Fernando Henrique
e mais por sua consciência cívica, sua visão do país,
seu sentimento de brasilidade.
Ruth Cardoso não foi a primeira-dama fútil das festas,
o ornamento a desfilar junto ao marido,
a deslumbrada exibindo jóias e roupas.
Mas exerceu o papel para o qual seu preparo intelectual
e seu sentimento de cidadã brasileira
se conjugaram para fazer da discreta senhora
uma pessoa participante do seu tempo,
um ser humano útil a outros seres humanos.
Ainda assim, recentemente foi vítima desse tipo de sordidez
que permeia o jogo político.
O dossiê urdido nas tramas palacianas
para denegrir o ex-presidente FHC
através dos gastos pessoais
realizados durante seu governo,
visaram atingir também dona Ruth.
De forma firme, sem se intimidar,
ela declarou publicamente que se mostrava indignada
com a exploração política que estava sendo feita
como os gastos pessoais do seu marido
e familiares no período em que ele fora presidente.
Realmente, uma abominação visando encobrir abusos de outros,
estes sim, absurdos.
Dona Ruth, mãe, professora, primeira-dama atuante
se foi para outra dimensão.
Fica o Brasil em certo estado de orfandade
num momento em que faltam mais mulheres
dotadas de espírito público, mulheres solidárias,
dignas, capazes de entender que cargo não é privilégio,
mas encargo e que o fim último da política,
como disse Aristóteles, é o bem comum.
Dona Ruth Cardoso, à sua maneira,
fez política como se deve fazer.
Ela se foi, mas fica seu exemplo.
O exemplo raro de como deve ser uma primeira-dama.
Dona Ruth valeu a pena.
Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, professora, escritora.

Nenhum comentário: