sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Legado aos nossos filhos

O mundo avança em vertiginosas transformações,
e não é só nas finanças ou economia mundiais:
ele se transforma a todo momento
em nossos usos e costumes,
na vida, no trabalho, nos governos, na família,
nos modelos que nos são apresentados,
em nossa capacidade de fazer descobertas,
no progresso e na decadência.
O que nos enche de perplexidade,
quando o assunto é filhos,
é a parte de tudo isso
que não conseguimos controlar,
que é maior do que a outra.
Se há 100 anos a vida era mais previsível
– o pai mandava e o resto da família obedecia,
o professor e o médico tinham autoridade absoluta,
os governantes eram nossos heróis
e havia trilhas fixas a ser seguidas
ou seríamos considerados desviados –,
hoje ser diferente pode dar status.
Gosto de pensar na perplexidade
quanto ao legado que podemos deixar
no que depende de nós.
Que não é nem aquele legado
alardeado por nossos pais
– a educação e o preparo –
nem é o valor em dinheiro ou bens,
que se evaporam ao primeiro
vendaval nas finanças ou na política.
A mim me interessam outros bens,
outros valores, os valores morais.
O termo "morais" faz arquear sobrancelhas,
cheira a religiosidade ou a moralismo,
a preconceito de fariseu.
Mas não é disso que falo:
moralidade não é moralismo,
e moral todos temos de ter.
A gente gosta de dizer
que está dando valores aos filhos.
Pergunto: que valores?
Morais, ora, decência, ética,
trabalho, justiça social, por exemplo.

É ótimo passar aos filhos o senso de alguma justiça social,
mas então a gente indaga:
você paga a sua empregada o mínimo que a lei exige
ou o máximo que você pode?
Penso que a maioria de nós responderia
não à segunda parte da pergunta.
Então, acaba já toda a conversa sobre justiça social,
pois tudo ainda começa
em casa e bem antes da escola.
Não adianta falar em ética,
se vasculho bolsos e gavetas de meus filhos,
se escuto atrás da porta ou na extensão do telefone
– a não ser que a ameaça das drogas justifique essa atitude.
Não adianta falar de justiça,
se trato miseravelmente meus funcionários.
Não se pode falar em decência,
se pulamos a cerca deslavadamente,
quem sabe até nos fanfarronando
diante dos filhos homens:
ah, o velho aqui ainda pode!
Nem se deve pensar em respeito,
se desrespeitamos quem nos rodeia,
e isso vai dos empregados ao parceiro ou parceira,
passando pelos filhos, é claro.
Se sou tirana, egoísta, bruta;
se sou tola, fútil, metida a gatinha gostosa;
se vivo acima das minhas possibilidades
e ensino isso aos meus filhos,
o efeito sobre a moral deles
e sua visão da vida vai ser um desastre.
Temos então de ser modelos?
Suprema chatice.
Não, não temos de ser modelos:
nós somos aquele primeiro modelo
que crianças recebem e assimilam,
e isso passa pelo ar, pelos poros,
pelas palavras, silêncios e posturas.
Gosto da historinha verdadeira de quando,
esperando alguém no aeroporto,
vi a meu lado uma jovem mãe
com sua filhinha de uns 5 anos,
lindas e alegres.
De repente, olhando para as pessoas
que chegavam atrás dos grandes vidros,
a perfumada mãe disse à pequena:
"Olha ali o boca-aberta do seu pai".
Nessa frase,
que ela jamais imaginaria
repetida num artigo de revista
ou em palestras pelo país,
a moça definia seu ambiente familiar.
Assim se definem ambientes na escola,
no trabalho, nos governos, no mundo.
Em casa, para começar.
O palavrório sobre o que legaremos
aos nossos filhos será vazio,
se nossas atitudes forem egoístas,
burras, grosseiras ou maliciosas.
O resto é conversa fiada para a qual,
neste tempo de graves assuntos,
não temos tempo.
Lya Luft é escritora

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